sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Ingratidão

Maria era uma escritora famosa, tinha vários livros publicados e sua vida financeira estava mais do que perfeita. Entretanto, por mais que sua vida estivesse muito bem resolvida, ela acreditava que não estava tão bem assim, vivia reclamando de coisas banais e deixava de ver o quanto sua vida tinha mudado, desde que saiu da sua pequenina cidade natal, largando seu emprego de garçonete para se aventurar no mundo do jornalismo e da literatura.
Ela via sua vizinha panicat e a invejava, desejando aquele corpo sarado, mas não fazia um exercício sequer.
A sua outra vizinha mudava a fachada de casa e Maria logo resolvia que a fachada de sua belíssima casa estava antiquada e precisava de uma revitalização, apesar de parecer impecável aos olhos dos demais vizinhos.
No trânsito, ela não só reclamava como agitava as mãos e, às vezes, esbravejava com outros motoristas. Quando fazia sol, ela murmurava do calor. Quando chovia, ela se queixava, por não querer se molhar justamente na hora que ia sair.
Mesmo quando seus assistentes faziam tudo do jeito solicitado, ela dava um jeito de colocar algum defeito no serviço.
Dias atrás, ela estava assistindo o jornal local e viu uma reportagem sobre um homem que tinha perdido toda a sua casa, móveis e utensílios domésticos durante uma grande tempestade. Quando a equipe de reportagem chegou no local, viu o homem dançando e cantando na chuva, com largos sorrisos e agradecendo a Deus por sua vida ter sido poupada.
A reportagem continuava com outros exemplos de pessoas que passaram por situações dramáticas, mas que preferiam ver o lado positivo das coisas, como um homem que ficou paraplégico e, depois de meses de depressão, viu sua vida se transformar completamente e vivia muito mais feliz do que antes do acidente.
Havia também uma mulher que tinha perdido seu carro recém comprado num acidente muito grave. Ela só teve alguns arranhões e agradecia porque continuava respirando e poderia voltar para a sua família ao final do dia. Ela sabia que não havia feito o seguro do carro, mas isso não a preocupava no momento. Poderia resolver depois.
Eram imagens e histórias comoventes para a maioria das pessoas, mas Maria não conseguia ver motivos para agradecer e na sua mente só vinham lamentações.


Mas digo sinceramente na vida a coisa mais feia é gente que vive chorando de barriga cheia”. Trecho da música Maneiras, de Zeca Pagodinho.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Acaso

Rogério ia para o trabalho, andando apressado. Estava atrasado e havia muitas pessoas nas ruas também apressadas e, aparentemente, estressadas ao extremo.
Estava atravessando um semáforo, quando uma moça derrubou sem querer a maleta dele, que se abriu e papéis voaram pra todos os lados. Ela, meio sem graça, quis ajudar, pegando a maioria dos papéis antes que as pessoas pisassem neles, enquanto ele juntava os outros.
- Me desculpe. Eu estava distraída e não consegui desviar – disse ela, desajeitada, exibindo um lindo sorriso.
- Não se preocupe. Isso sempre acontece comigo – ele disse, também sorrindo, tentando ver o lado positivo daquela situação.
Ela apertou a mãe dele e disse que se chamava Elisa, estava muito atrasada e tinha que ir.
Ele quis dizer algo, mas ela saiu, sem olhar pra trás.
Quando ele chegou ao trabalho, tentou se concentrar, mas só conseguia pensar naquele sorriso.
Às dez horas da manhã, ele tinha uma reunião com a sua nova chefe. Chegando à sala da chefe, encontrou a mesma mulher que havia derrubado a sua maleta. Ele sorriu, meio sem graça diante daquela coincidência e feliz por tê-la reencontrado, e ela exibiu novamente o seu lindo sorriso.
Ele olhou rapidamente para as mãos dela e percebeu que ela não usava aliança.
- Parece que já nos encontramos por acaso a caminho daqui – ela disse, tentando deixá-lo à vontade, pois ele parecia um pouco inquieto. – Você já conhece a sua nova chefe. Digo logo que nada vai mudar, pelo menos por enquanto. Você pode continuar fazendo o que sempre fez. Vi os relatórios e você vem se destacando na sua área.
- Muito obrigado.
- Acho que é só isso. Você já pode ir.
Ele já estava virando para sair, quando ela acrescentou:
- E tem mais uma coisa. Eu sou nova na cidade e queria que hoje à noite você me levasse num bom restaurante para conhecer melhor a cidade – ela fez uma pausa e ele ficou calado. – Se você puder, é claro.
- Posso sim. Onde busco a senhora?
- Não me chame de senhora, por favor. Meu nome é Elisa e você já sabe disso. Você pode me pegar aqui mesmo às oito horas.
- Estarei aqui. Mas eu posso fazer uma pergunta?
- Pode sim.
- Você quer conhecer a cidade ou me conhecer?
- Os dois.
À noite, ele a levou para jantar num dos melhores restaurantes da cidade, conversaram muito e perceberam vários pontos em comum. Depois foram a dois pontos característicos da região e se divertiram bastante. Após um momento de silêncio, ele finalmente decidiu se aproximar e foi se aproximando calmamente até que ela o beijou de forma delicada e depois com intensidade.
- Eu espero não correr risco ao me envolver com minha linda chefe – disse ele com bom humor.
- Relaxa, seu bobo. Como você pode ver, eu sou uma chefe boazinha.

O acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído.” Trecho da música Epitáfio da banda Titãs.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Você teve a sua chance

Ronaldo e Mariana estavam namorando há seis meses e ele então a convidou para morarem juntos na casa dele.
Tudo estava indo muito bem no começo e eles estavam se divertindo muito nessa fase. Era como se estivessem numa constante lua de mel.
Mas, depois de três meses, os pequenos defeitos um do outro começaram a aparecer.
Mariana já não achava Ronaldo tão romântico assim. Na verdade, muitas vezes ele a tratava de forma bruta e insensível.
Ronaldo já não achava Mariana tão madura assim. De fato, ela tinha manias infantis e sua voz fina não agradava mais.
Ele começou a chegar tarde em casa, geralmente depois de ter bebido algumas cervejas. E, certo dia, Mariana reclamou:
- Você sabe que eu não sou ciumenta, mas você está exagerando. Assim não vai funcionar.
- Não posso mais nem beber com meus amigos?
- Claro que pode, mas todo dia não dá!
Ele disse que ia melhorar, ia diminuir suas saídas com os amigos. E ele começou a chegar cedo em casa e, após tomar um banho rápido e de dar um beijinho nela, passava a noite quase toda jogando vídeo game. E, depois de alguns dias, Mariana novamente reclamou:
- Você sabe que eu não sou histérica, mas você está exagerando de novo. Assim não vai funcionar.
- Não posso mais nem jogar vídeo game?
- Claro que pode, mas todo dia não dá!
Ele disse que ia melhorar e no outro dia a levou para jantar e depois foram para uma festa com alguns amigos em comum.
Dias depois, Ronaldo começou a jogar futebol à noite três vezes por semana e nos dias livres não fazia nada diferente com Mariana.
Ela reclamou mais uma vez que o namoro estava virando uma rotina ruim. Mas dessa vez ele parece que não ouviu ou fingiu que não escutou, pois não mudou absolutamente nada.
Depois de mais uma noite de futebol com os amigos, quando ele chegou em casa, viu sua namorada sentada no sofá e havia duas malas ao redor. Ele ficou assustado e perguntou:
- O que é isso?
Ela se levantou, pegou as malas, começou a andar em direção à porta e disse apenas:
- Você teve a sua chance.
Depois de ela sair, ele ficou muito triste e decidiu dar um tempo para ela pensar melhor. Depois de uma semana, ele ligou para ela.
- Eu sei que errei, mas prometo que vou melhorar.
- Você já me disse isso antes e não melhorou. Infelizmente, não dá mais. Como eu disse, você teve a sua chance.
Ela desligou e ele desmoronou na cama. Passou dias mal e então começou a perceber que ele tinha mesmo que melhorar. Não por ela, mas por ele mesmo.
Tempos depois, com uma vida muito boa emocionalmente, ao relembrar dessa situação, ele sorriu e percebeu que foi a melhor coisa que já tinha acontecido na sua vida.


Já que você não está aqui, o que posso fazer é cuidar de mim”. Trecho da música Vento no litoral, da banda Legião Urbana.